- Certeza, certeza, não... mas segundo os mapas – e a bússola – é por aqui, sim.
Estavam naquele caminho o dia todo. Os pés tinham bolhas e calos, as botas forçavam-lhes os tornozelos mirrados e as meias raspavam na perna.
- Puta que pariu, eu tô ficando com medo.
Herr riu. Não era alemão, tampouco uma mulher. Mas tinha aquele apelido desde que os meninos o encontraram caído na calçada da venda numa manhã quente de janeiro, o rosto coberto de lama e a pele cheia de feridas. Desde então, viraram algo como melhores amigos, embora houvesse desconfiança da população de Montanhosa que eles fossem... homossexuais.
- A gente não vai se perder – disse Herr, a voz determinada de sempre. – Relaxa, fica frio. Apanha a lanterna e ilumina o caminho, bora.
Bardo tirou uma lanterna amarela da mochila de tecido verde-musgo e deixou a manta iluminada repousar sobre os galhos partidos, as folhas quebradiças e secas, a névoa espessa e o sussurro da fauna. Bardo ganhara o apelido aos cinco anos – era excelente em contar histórias de terror para os amiguinhos na creche da pequena Montanhosa, no interior daquilo que os pais chamavam de Brasil, mas que eles, àquela época minúsculos, eram incapazes de compreender. Um dia, rezava a lenda, Bardo avistara cinco pontos sobrevoando os céus. Fizera um escarcéu. Conspirou-se na Câmara sobre todos os tipos de assombrações – de espíritos da família Cortela a extraterrestres. No fim das contas, o Bardo virou O Bardo Mentiroso.
Herr tomou a lanterna das mãos do amigo e avançou vinte metros na mata densa. A temperatura caía vertiginosamente. Daqui a pouco serão nossos joelhos, pensou Bardo, pé ante pé crepitando nas folhas, crec, crec, crec.
- Vamos parar aqui – disse Herr. – Amanhã a gente continua.
Haviam chegado a uma clareira ovalada. No centro dela, restos de uma fogueira.
- Alguém esteve aqui – disse o Bardo. – Alguém esteve aqui. Olhe a fogueira.
Herr avançou pelas folhas e chutou um pouco da brasa restante. Um carvão rolou pelo chão e parou junto a uma pedra.
- Sim. E já foi embora. Deixe de ser medroso. Anda. Traz as coisas – ordenou. – Vamos passar a noite aqui.
- Você já disse isso.
- Estou repetindo.
Bardo odiava quando o amigo fazia aquele tipo de coisa. Mas não podia se queixar. Não àquela altura do campeonato. Herr sempre fora assim. Misterioso. Um dia inventou de cabular aula. Voltou com o uniforme do colégio cheio de sangue. Quando contestado, disse tratar-se de uma enorme sucuri. Alguns riram, outros duvidaram. Ganharam, conforme o tempo foi passando, a alcunha de Os Dois Mentirosos. Eram constantes os gritos de “lá vão os dois mentirosos zanzando por Montanhosa”. Mas eles, evidentemente, não ligavam. Eram bons demais para tanto.
- Não gosto desse lugar – Bardo disse enquanto ajeitava uma nova fogueira. – Esse vento, essa neblina...
Herr sentou no chão e jogou um pouco de álcool em cima dos galhos. Em seguida, riscou um fósforo e deixou o fogo arder. Apanhou dois tubos de plástico, e de dentro deles, lascas de marshmallow.
- Espeta em alguma coisa e come. Melhor do que nada.
- Marshmallow?
- Algum problema?
- Não... é só que... ah, dane-se.
Isso, Herr disse para si, dane-se.
- Você acha que ela existe?
- Zoloz?
- É.
Herr deu de ombros.
- Como eu disse: os mapas e a bússola me fazem crer que sim, mas não tenho certeza. Vamos descobrir quando o sol chegar.
- Uma cidade de ouro e prata no meio da selva... acho difícil.
- Vale pela aventura do fim de semana, não? Vamos, Bardo, não seja pessimista.
Foi a vez d’o Bardo dar de ombros.
- Ok. Você venceu.
O fogo crepitou. Herr mordeu o marshmallow e sentiu seu interior derreter na boca.
- Isso tá muito bom. Come, Bardo.
- Não gosto desse lugar – repetiu.
- Tá com medo dos dragões?
- Lá vem você...
- Ok, se não quer acreditar, o problema é seu, mas eu sei do que digo.
- Não existem dragões.
- Cinco. E existem. Eu sei que existem. Aliás, não foi você que viu cinco pontos no céu... Bardo Mentiroso?
- Eu não sou mentiroso!
Herr mordeu mais um pouco do marshmallow.
- Calma, calma... não tem por que ficar assim. Isto é... se você não for realmente o mentiroso...
Bardo avançou para cima dele.
Herr esquivou-se e conteve a ira do colega do jeito que deu.
- Calma, porra. Vai assustar os bichos.
- Os seus dragões?
O Bardo ria. Herr se sentiu levemente humilhado.
Algo soprou um vento gelado na fogueira e eles se viram mergulhados na penumbra. Não fosse a lanterna esquecida ligada junto da mochila... o caos, pensou o Bardo, o caos.
- Os dragões – disse Herr numa voz trêmula. – Os putos dos dragões. Eu sei o que falo, porra.
- Dragões não existem.
- Ah, não? Então o que foi que pegou o professor Alfredo e nunca mais devolveu?
Alfredo Schecter, professor de química dos meninos no segundo ano, desaparecera misteriosamente naquela mesma floresta durante janeiro de 2003. Durante muito tempo especulou-se sobre o que teria realmente acontecido: carteis praticando assassinatos na fronteira? Desova na Lagoa Montanhosa? Assombração?
- Os dragões? – Bardo sugeriu com o sarcasmo na ponta da língua.
Herr iluminou o chão e sentou numa pedra relativamente lisa.
- Ok, senta aí. Vou te contar o que me disseram uma vez, ok?
- Estou bem em pé – disse o Bardo –, mas diga lá. Agora eu fiquei curioso.
A lanterna pousou no chão e ficou ali.
Herr disse:
- Existem cinco dragões que vagam pela noite. São todos negros, suas peles possuem espinhos e seus olhos são feitos de ouro. Aparecem e devoram a alma das pessoas.
- E seus corpos?
- Sei lá. Só me falaram isso.
- Você é maluco, Herr.
- Você jura de pés juntos que viu cinco pontos brilhantes no céu.
- Sim, mas os dragões, segundo você diz, são negros, sendo assim, não brilhariam...
- E seus olhos? De ouro, quer dizer. Ouro. Ouro brilha, não brilha?
O Bardo apanhou a lanterna e iluminou as duas mochilas.
- Vamos dormir – disse. – Está ficando tarde.
Herr apanhou o saco de dormir e se enfiou lá dentro.
Eles existem, pensou. Eu sei que existem.
O que primeiro lhe acordou não foi o calor ou o brilho excessivos, e tampouco o barulho das asas esfregando o ar gélido da neblina nas bochechas. Foi a dor. A dor dos espinhos cortando sua carne em enormes rasgos, a dor dos espinhos rasgando pele, músculo, veia, osso, roupa, tudo que estivesse em seu caminho.
Eram cinco.
Estavam ali.
Parados.
Negros.
Os olhos brilhando como ouro.
Tinham aparência de lobos tosados. Dois caninos escorriam para fora das bocas ensanguentadas.
Rosnavam.
Já não lhe cabia mais gritar.
Sabia que ninguém daria ouvidos aos lamentos desesperados.
O do meio avançou e arrancou-lhe a perna numa mordida desesperada.
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAH!
Sangue.
Na boca dele.
Na boca da criatura.
Sangue escorrendo pelo chão, pelas folhas, pelos galhos, pelas pedras...
Observou seus olhos de ouro.
- Eu disse que dragões não existiam, Herr. Eu disse.
O lobo uivou e afundou a pata na boca do amigo.
Quando a retirou, trouxe sua alma junto.
Mateus Baldi tem 19 anos, escreve desde os 14 e publica seus contos policiais no Impublicáveis Contos.
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Sabine d'Alincourt