29 de janeiro de 2014

Noite sem Fim - PARTE 1


Aquela tarde havia sido cansativa. O dia todo havia sido cansativo, para falar a verdade, mas a tarde havia sido especialmente corrida; coisa comum nos finais de semana mas era algo ao qual Kevin ainda tentava se habituar. Tem sido sempre assim desde que começara a trabalhar no mercado do seu tio a pouco mais de um mês. Haviam apenas quatro ''grandes mercados''por assim dizer, naquela pacata cidade em que vivia, e o mercado do seu tio Fillip era um dos maiores e mais conhecidos pela população local.



O Bolichão do velho Fill, era como chamavam os mais íntimos - os velhotes, clientes a quase cinco décadas. Fillip não mantia muitos empregados trabalhando consigo; eram apenas cinco, que se revezavam entre o caixa, açougue, organização dos produtos, assistência aos clientes, etc. O quinto empregado era o próprio Kevin, e sua tarefa era chegar lá as seis e trinta da manhã para verificar se estava tudo em ordem, e então preparar-se para abrir o estabelecimento as sete horas, junto de seu tio. Trabalhava o dia inteiro, mas somente sexta e sábado, pois eram dias em que o mercado precisava de mais um funcionário para dar conta da clientela, e então domingo a tarde, reunia-se com o restante do pessoal para fazer a faxina do local e a reposição dos estoques; tudo sob a supervisão de Fillip. Trabalhar justamente nos finais de semana podia não ser algo agradável, mas pelo menos o tio era generoso na hora do pagamento. S$ 400,00 dólares mensais para trabalhar três vezes por semana? Era muito bom.



Kevin chegou em casa, ergueu a porta da garagem e entrou com sua bicicleta. Havia comprado-a semana passada, quando recebeu o seu primeiro pagamento. Não havia saído barato, mas quando viu a bike na vitrine, precisou leva-la. Era um desses modelos novos com tudo que uma bicicleta foda precisa ter e, além disso, Kevin tinha uma espécie de paixão por bicicletas, apesar de não coleciona-las(não havia lugar na casa mesmo); então assim que comprou a nova, vendeu sua antiga pro filho do vizinho. Ao entrar, viu que o carro não estava na garagem. ''Que estranho a mãe ainda não ter chegado do serviço.'' pensou, e então escorou a bicicleta na parede. Parou e olhou por um instante ao redor, franzindo as sobrancelhas; em seguida deu um leve suspiro: a garagem estava uma tremenda bagunça. Mas é claro que ele não iria fazer nada a respeito ''Não hoje, pelo menos.'' pensou consigo mesmo,  então deu as costas e saiu, baixou a porta da garagem e a trancou. Ele estava faminto, exausto e perguntando-se porque seu tio não contratava mais um ou dois funcionários. Não era barato, ele sabia, mas o mercado estava em ascensão e Fillip já havia passado dos sessenta anos, não era mais um garotão, como dizia ser. ''Mas enfim, pelo menos eu estou de férias da faculdade e posso vadiar de segunda a quinta.'' pensou em voz alta, com um pequeno sorriso na cara. Observou a rua de sua casa, estava vazia. Haviam três carros estacionados e, lá na esquina, dois cães atravessavam tranquilamente pela faixa de segurança. Kevin riu. O Sol já estava baixo, com aquele tom alaranjado no horizonte e algumas casas estavam com as luzes de dentro e de fora acesas - incluindo as luzinhas de Natal - contrastando com o tom laranja e azulado do fim de tarde. Kevin suspirou, subiu os degraus da varanda e entrou em casa.

Acendeu a luz e, sem vontade alguma, apertou o interruptor que ligava as luzes de Natal da casa dele. Aquele clima natalino não o deixava muito a vontade. As pessoas felizes e aquela bobagem toda; Kevin nunca conseguiu se sentir parte disso. O motivo era que, em dezembro de 1994, seu pai havia morrido lutando contra as chamas de um incêndio de grande escala, ocorrido nas montanhas de Brook Hills. O corpo de bombeiros da cidade de Brook não estava conseguindo controlar as chamas e pediram socorro as cidades vizinhas. Richard Miller era bombeiro a mais de dez anos e, naquela semana, saiu as pressas de casa, prometendo retornar. Os noticiários locais mantinham a população atualizada e sua mãe estava sempre grudada no sofá acompanhando cada noticia. Quando tudo acabou, foram informadas as mortes de dois bombeiros e um civil. Kevin tinha apenas quatro anos quando isso aconteceu, mas a imagem dos companheiros de trabalho de seu pai chegando a sua casa e de sua mãe chorando, nunca saíram de sua cabeça. Seu pai morreu tentando salvar a vida do companheiro. Ele morreu como um herói, foi oque disseram. Dia 17 de dezembro faria dezoito anos que isso tudo ocorrera.

Kevin abriu a mochila e tirou dela uma caixa de leite, um pote de achocolatado em pó e dois sanduíches prontos que havia trazido consigo do mercado, em seguida os colocou na mesa da cozinha. Ouviu um barulho distante, como algo caindo. - Mãe! - chamou, ninguém respondeu. ''Mas o carro não esta na garagem...'' Retirou a embalagem plástica de um dos sanduíches e o mordeu com vontade. De boca cheia e mastigando, saiu da cozinha, subiu as escadas e foi até o quarto de sua mãe. - Mãe? - chamou de novo, mas ao abrir a porta encontrou o cômodo vazio. A janela do quarto estava aberta e uma brisa entrava por ela. Contornou a cama e foi fecha-la, abaixando-se antes para juntar o porta retratos que havia caído da cômoda. Na foto estava ele, sua mãe, sua vó e o cachorro da vó, Cueca. Kevin foi quem deu o nome. Sua mãe e sua vó até protestaram por um instante, mas não teve jeito, esse era o nome perfeito. O cachorrinho era branco com manchas escuras, e uma dessas manchas contornava o quadril e se estendia até a metade das coxinhas, lembrando uma cuequinha box; o rabo ainda era todo branco, como se tivesse saído de um furo do tecido. Todos achavam a maior graça. Kevin colocou o porta retratos de volta no seu lugar e ergueu o pulso pra olhar o relógio; já eram quase oito e meia. - Tu anda voltando tarde ultimamente hein mãe? Com certeza ta namorando de novo. - A mãe estava mais perfumada de uns dias pra cá, e Kevin havia encontrado uma rosa vermelha na mesinha da sala semana passada, mas preferiu fingir não ter visto nada. O ultimo namorado durou o que, uma três semanas?

Ao chegar em seu quarto, abriu o notebook e o ligou, mas sem nenhuma vontade de entrar na internet. Sentou-se na cama, ainda terminando de mastigar o ultimo pedaço do sanduíche. Havia um livro em cima do seu travesseiro, ele o colocou pra um lado e então esparramou-se. Deu um longo bocejo e sua visão embaçou. Esfregou os olhos e virou o rosto de lado; lá fora já anoitecia. Deu outro bocejo e seus olhos foram pesando cada vez mais enquanto observava o refletir das insistentes luzes de Natal no vidro da janela. Adormeceu.


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Kevin acordou assustado e ergueu-se da cama depois de ter ouvido um grito - ou pensar ter ouvido um grito. Esfregou os olhos, com certeza havia sido só um sonho. Voltou a deitar e tirou o celular do bolso da calça enquanto bocejava. Com os olhos lacrimejados de sono, olhou a hora e voltou a levantar-se, dessa vez realmente assustado. Eram quase seis horas da manhã! - Merda como foi que dormi tanto!? - Levantou da cama, iluminando o caminho com o celular, pegou sua toalha de banho jogou-a no ombro e abriu a gaveta de cuecas. Estava muito escuro. Apertou o interruptor de luz, mas a luz não acendeu. ''Que merda, será que a lâmpada queimou?'' Saiu do quarto e tentou acender a luz do corredor, mas ela também não acendeu. - Ótima hora pra vocês cortarem a luz, seus imbecis! - disse ele, imaginando que tipo de trabalho estariam fazendo na rede elétrica a essa hora da manhã e em pleno sábado. O celular apitou, a bateria estava fraca. ''Droga, essa não.'' Desceu e foi até a porta que levava a garagem, apontando a luz do celular para os degraus da escada. Havia uma lanterna ali em algum lugar. Foi até as prateleiras procurar. Caixas vazias, ventilador estragado, teias de aranha, caixas com entulhos... e a lanterna ao lado. - Beleza! - disse e voltou por onde veio. Foi até o banheiro escovar os dentes, lamentando por não conseguir enxergar-se no espelho e amaldiçoando os caras da companhia elétrica. Tomou o banho mais rápido da sua vida - com a água gelada mesmo - vestiu-se, arrumou o cabelo para trás e voltou até a sala, estranhando aquela escuridão toda. Tornou a olhar seu relógio, ele marcava 6:28, já deveria estar clareando lá fora. Foi até a porta, abriu-a e saiu na varanda. Uma brisa gelada o atingiu e ele encolheu os braços. Estava tudo muito escuro. O céu estava negro, não havia som algum na rua, oque era ainda mais estranho, pois muita gente sai trabalhar a essa mesma hora. Dois postes piscavam uma luz morta no fim da rua. Kevin voltou para dentro de casa, fechou a porta e foi até o quarto de sua mãe, ficando surpreso ao ver que ela não havia dormido em casa - ele nem lembrou de perceber se o carro estava ou não na garagem. Pegou seu celular para ligar pra ela e ficou pensativo por um instante, quase desistindo, mas decidiu que ligaria. A chamada caiu na caixa postal e as chamadas seguintes terminaram da mesma forma. Já eram 6:46. Ele tentou evitar ao máximo, mas agora estava começando a ficar assustado.

Subiu de novo até seu quarto e vestiu uma jaqueta. Tentou ligar para sua mãe uma ultima vez, mas caiu na caixa postal novamente; isso já estava o deixando bastante preocupado. - Droga mãe, atende... - respirou fundo. - Tudo bem, ela esta bem e... - um grito fez ele se virar imediatamente, pareceu ter vindo da rua. Kevin deu um pulo até a janela. Uma pessoa cruzou correndo e caiu bem em frente a sua casa. Não dava para ver direito devido a escuridão, mas... parecia ser uma mulher. Kevin podia ouvi-la chorando e pedindo socorro. Estaria ferida ou coisa do tipo? Ele estava prestes a descer para oferecer ajuda, mas algo aconteceu: uma espécie de névoa negra, uma massa ainda mais escura que a própria escuridão noturna foi envolvendo a moça aos poucos, enquanto ela se arrastava e gritava por socorro; então a nuvem negra a cobriu por completo, e os gritos foram abafados, até que não pode se ouvir mais nada. Segundos depois o agressor desapareceu, misturando-se a escuridão. Kevin cambaleou para trás, tentando não acreditar no que viu. ''O que diabos foi aquilo!?'' Desceu correndo as escadas e observou pela janela da porta. A moça estava caida no mesmo lugar e não havia sinal do agressor. ''Mas oque foi aquilo que aconteceu!? O que era aquela coisa!?'' Kevin estava com medo e não parava de pensar em sua mãe. Por que não atendia o celular? Estaria segura? ''Meu Deus.'' Abriu a porta e desceu a varanda, iluminando o caminho com a lanterna; o feixe de luz focando tudo que parecia mover-se, porém, nada realmente se movia. Quando ele chegou perto o suficiente da moça caída, a luz da lanterna iluminou uma cena de horror: ela estava morta e em seu rosto pálido estava estampada uma expressão de dor e agonia inimagináveis. Seu abdômen e tórax estavam abertos e completamente vazios; havia sangue pra todo o lado, mas nenhum órgão. Kevin colocou a mão na boca e virou o rosto, tentando não vomitar. Com a mão trêmula, pegou o celular pra ligar pra polícia, mas a bateria havia acabado. - Ótimo, mais essa agora! - Gritou, olhando pra todos os lados. A luz da lanterna seguindo a direção de seus olhos. O que era isto tudo!? O que diabos estava acontecendo!? Ele estava em choque, a mulher estava morta e ele não sabia oque fazer; até que um barulho chamou sua atenção, fazendo-o virar imediatamente. Uma lata de lixo apareceu rolando a calçada. Kevin olhou ao redor, sentindo-se observado. No fim da rua, aqueles dois postes ainda piscavam fraco, lutando para se manterem acesos, até que ambos estouraram, deixando a esquina em completa escuridão. Kevin voltou correndo para dentro de casa, batendo a porta atrás de si.

Conto escrito por Otávio Augusto Hoeser.
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Sabine d'Alincourt